Os estudos direcionados à realidade amazônica são maximizados com o Pacto Amazônico, considerando-se que os temas do Tratado refletem as necessidades mais imediatas da região, a exigir tratamento jurídico especializado: direito ecológico; direito agrário; direito indígena; direito minerário; direito da navegação (fluvial); direito do comércio exterior; e, direito comunitário. Dai a denominação direito amazônico. Interpretar e aplicar o direito de acordo com o contexto regional.

sábado, agosto 05, 2006

Entrevista



“A mídia noticiou que mais de oitenta produtos típicos da Amazônia estão registrados por países estrangeiros; estão levando terra preta arqueológica, sangue de índio e água potável.”

Carta Forense – Como surgiu a idéia do Direito Amazônico?

Gursen De Miranda - O direito amazônico é um sonho de caboco marajoara (caboclo é de dicionário). Os estudos jurídicos contextualizados à realidade amazônica, que vinha realizando, foram maximizados com a pesquisa, em 1995, sobre o Tratado de Cooperação Amazônica, para proferir palestra em Rio Branco (AC), sobre as implicações jurídicas da abertura de estrada para o Pacífico. Os temas do Tratado refletem as necessidades da região, a exigir tratamento jurídico especializado, regionalizado e multidisciplinar. Nominei o conhecimento jurídico pertinente a Amazônia de direito amazônico.

CF – Há cursos para interessados nesta área atualmente? Como o operador do Direito pode fazer para se preparar neste ramo?

GDM – A UFRR, em 1999, criou o curso de especialização em Direito Amazônico. A Faculdade Atual, em Boa Vista, implantou o bacharelado em Direito, conforme o direito amazônico. Organizei, em 2004, o livro Direito Amazônico – construindo o estado da arte, à guisa de anais do I Congresso Internacional de Direito Amazônico. Os profs. Santos Ditto, do Equador, e, Duque Corredor, da Venezuela, lançaram, em Gauyaquil (Equador), uma Teoría General del Derecho Agrario Andino y Amazónico.

CF – Que disciplinas do Direito ele abrange?

GDM – Seguindo a temática do Pacto Amazônico, identifiquei os ramos de um direito amazônico: ambiental; agrário; indígena; minerário; navegação (fluvial); comércio exterior; comunitário.

CF – Como a comunidade jurídica recepcionou a idéia deste novo ramo do Direito?

GDM – Em 2002, na Itália, após proferir palestra, onde faço referências ao direito amazônico, convenceram-me a realizar um evento jurídico desse novo direito, na Amazônia. O incentivo do prof. Raymundo Laranjeira, da Bahia, em São Luis (MA), durante um seminário de direito agrário, em 2003, foi decisivo. Na presidência da Academia Brasileira de Letras Agrárias realizei, em Boa Vista, em 2004, o I Congresso Internacional de Direito Amazônico, com a participação de juristas da Pan-Amazônia, Portugal, Espanha e Itália. Entendo que é o reconhecimento formal da comunidade jurídica nacional e internacional sobre a existência de um novo Direito. O prof. Antônio José tornou realidade o II Congresso, em Belém do Pará, em 2005. O prof. Rene Cavero, da Bolivia, está organizando, para novembro de 2006, o III Congresso, em Trinidad, com apoio do Tribunal Agrario Nacional. Recomendação do MEC, em 1998, destaca que o curso de especialização em direito amazônico, da UFRR, é um projeto de alta qualidade, ... vocacionado diretamente para a realidade local.

CF – Quais são as principais normas que norteiam este ramo?

GDM - Esclareço que o direito amazônico não é um novo ramo jurídico. É uma classificação jurídica, envolvendo disciplinas pertinentes à realidade amazônica; é um sistema jurídico regionalizado. Assim como existe o direito público e o direito privado, desde os romanos; modernamente o direito econômico, o direito empresarial, entendo necessário um direito amazônico. O TCA é o principal fundamento do direito amazônico.

CF – Como vem sendo aplicado o Tratado de Cooperação Amazônica?

GDM - O TCA, celebrado em 1978, com o objetivo de promover ações conjuntas para o desenvolvimento harmônico da Bacia Amazônica, foi assinado pelos países da Pan-Amazônia. Visando aperfeiçoar o processo de cooperação desenvolvido pelo Pacto, em 1995, as oito nações criaram a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica. Pelo Protocolo, a OTCA passou a ter uma Secretaria Permanente com sede em Brasília. Destinadas ao estudo de tópicos específicos foram criadas as Comissões Especiais da Amazônia. No Pacto não houve preocupação com a criação de um Poder Judiciário. Não houve preocupação com o Direito, com um direito amazônico.

CF – Já que a Amazônia é um território transnacional, há projetos de uma integração das normas amazônicas? Como vai ser viabilizado isto?

GDM - É fato o desconhecimento da Amazônia pelos brasileiros. Ressalto a cíclica cobiça da Amazônia, desde o famoso El Dorado, de acordo com a conveniência do momento. A Amazônia Total, de 1981, que definiu a Amazônia como patrimônio da humanidade, está em andamento. As tentativas de internacionalização da Amazônia reforçam a necessidade do fortalecimento intelectual da população amazônica, especialmente na seara jurídica. A Constituição Federal, de 1988, traz o entendimento da necessidade de integração latino-americana, conforme estabelece o artigo 4º, e seus incisos, com destaque ao parágrafo único. Por ocasião do Congresso de Direito Amazônico, de Boa Vista, foi aprovada a proposta apresentada pelo Ministro Bautista Bardelli, da Corte Constitucional do Peru, visando a criação de normas constitucionais uniformes, para os países da Pan-Amazônia.

CF – Há o planejamento de alguma ação contra biopirataria?

GDM – Os milionários interesses das indústrias farmacológicas e de cosméticos, com o domínio da tecnologia, facilita o financiamento de pseudos pesquisadores, missionários, ONG's, em face da inexistência de barreiras legais efetivas. A mídia noticiou que mais de oitenta produtos típicos da Amazônia estão registrados por países estrangeiros; estão levando terra preta arqueológica, sangue de índio e água potável. Os detentores da matéria-prima e do conhecimento não recebem incentivos e nem benéficos. Patente, reconhecida pelo direito internacional, em nada nos favorece; a Convenção de Diversidade Biológica, da ECO-92, aprovada no Brasil, é letra morta. Entendo que o governo federal, com a lei de florestas públicas (Lei 11.284/2006), oficializou a biopirataria.

CF – Há uma preocupação emergencial em tratar da situação de desmatamento em detrimento da cultura da soja?

GDM – O Brasil deveria repensar sua política agrária. Produzir não é só exportar, é agregar valor. Ademais, é possível o agronegócio paralelo à agricultura familiar. Em qualquer forma de atividade, porém, deve-se cumprir com a função social da terra, que impõe a conservação dos recursos naturais, inclusive a cultura da soja. A biodiversidade exige estudo e pesquisa da área, antes de qualquer atividade agrária, com mais razão o desmatamento.

CF – Existe o planejamento de incentivo à economia sustentável para as populações ribeirinhas?

GDM – Os estudos sobre a Amazônia, normalmente, são equivocados. O tipo humano característico da população rural da Amazônia - especialmente o ribeirinho -, historicamente reconhecido, é o caboco. O índio, desde o período colonial, com Carta Régia de 1611, tem legislação amparando seus direitos às áreas que ocupa. O negro, com a Constituição, de 1988, conquistou o direito às áreas quilombolas. Nada dizem sobre o caboco. A Lei de Florestas Públicas trata de comunidades locais, sem referencia ao caboco. No Direito o caboco não é reconhecido como sujeito de direito. Não existe, no Brasil, política séria direcionada aos interesses regionais e a produção de alimentos para o povo amazônida. Os organismos internacionais ficam mais preocupados com os bichinhos e as plantinhas da Amazônia e abstraem as pessoas da região.

CF – Como fica a situação do índio no cenário atual?

GDM – No aspecto fundiário os indígenas, na Amazônia, estão em situação privilegiada (49% do território de Roraima é área indígena), no entanto, saúde, educação, lazer, trabalho e renda, estão a desejar. A FUNAI, ONG's e governos estrangeiros pressionam para demarcação, mas depois que as áreas são homologadas os índios ficam jogados à própria sorte. O exemplo mais evidente são os da área ianomami.

CF – Quais são as expectativas para o desenvolvimento desta área do Direito no futuro?

GDM – O direito amazônico é uma realidade concreta, em face da problemática de uma região que envolve mais de 60% do território brasileiro e nove países. A linha de fronteira da Amazônia, desabitada e desprotegida, alcança 10.930 quilômetros, favorecendo ao tráfico e ao contrabando. A preocupação maior na região deve ser com o ser humano, dai a importância do direito amazônico.