Os estudos direcionados à realidade amazônica são maximizados com o Pacto Amazônico, considerando-se que os temas do Tratado refletem as necessidades mais imediatas da região, a exigir tratamento jurídico especializado: direito ecológico; direito agrário; direito indígena; direito minerário; direito da navegação (fluvial); direito do comércio exterior; e, direito comunitário. Dai a denominação direito amazônico. Interpretar e aplicar o direito de acordo com o contexto regional.

quarta-feira, julho 02, 2008

Índios e a fronteira de Roraima.

Índios, guardiões da fronteira?

Carlos Borges *

Alguns artigos (inclusive nesta coluna), argumentos de antropólogos e até de burocratas do governo têm afirmado ser os índios guardiões de nossas fronteiras, algumas vezes referindo-se ao caso específico da Raposa Serra do Sol. Por conta disso, o Brasil teria uma obrigação histórica com os índios, a ponto de ser legítima a dimensão das terras demarcadas ou requeridas para demarcação. O problema é que muitos julgam conhecer história sem ler história, e pensam que estão em condições de explicá-la a qualquer mortal, simplesmente por ter cursado um inofensivo curso de ciências sociais. Por trás de tudo isso está a idéia de tornar um ponto de vista tão habitual que ninguém estaria em condições de confrontá-lo. No entanto, as afirmações históricas que colimam são, em grande parte, invenções deles mesmos.

Em contexto assim, as palavras ditas sobrepõem-se aos fatos, tornando-se figuras de linguagem, metonímias que só geram caos mental. Afirmar que os indígenas do Vale do Rio Branco eram guardiões das fronteiras da região é desconhecer completamente a história, principalmente citando fontes históricas que, imagina-se, jamais foram lidas adequadamente.

Joaquim Nabuco, que fez a defesa do Brasil na questão Pirara, escreveu todo seu relatório em francês (em 18 volumes, fora os anexos), uma língua que dizia pensar melhor que em português. Praticamente compulsou todas as correspondências, reports e informações escritas sobre essa região, provenientes das administrações que melhor se sistematizaram depois do Diretório Pombalino, após uma época em que toda a Amazônia era objeto de invasões e incursões estrangeiras, com o fim único de justificar a legitimidade da ocupação portuguesa na região.

Os argumentos de Nabuco em suas memoires dizem que cada potencia colonial utilizava os índios de acordo com seus interesses na região. Os ingleses, por exemplo, argumentaram que a amizade entre Ajuricaba e os holandeses era uma prova de que eles estiveram por aqui bem antes dos portugueses, e que, portanto, eles, os ingleses, por serem herdeiros dos domínios daqueles, poderiam requerer direitos sobre a região do Tacutu e Rupununi, dada essa circunstância histórica. Os portugueses, por seu lado, teriam empreendido iniciativas no sentido de fixar os índios através de aldeamentos, que em nenhum momento foram bem sucedidos, daí a necessidade de impor-se através de fortificações e guarnições militares. Em nenhum momento houve adesão dos indígenas ao projeto colonial português, ao contrário, os índios resistiram, fugiram ou desertaram.

Os espanhóis também não agiam de outra forma: os estabelecimentos de missões lideradas por missionários capuchinhos da região que vai do Essequibo ao Orinoco tinham o interesse explícito de assegurar o domínio espanhol na região contra os holandeses, utilizando-se para isso os índios. É claro que subjacente a tais relações estava a disputa pela região, sendo as populações indígenas obstáculos para o sucesso da conquista, tendo de ser aldeadas, assimiladas e amansadas. Impossível, portanto, que os índios, num contexto de imposição de dominação colonial fossem os guardiões da fronteira. Nabuco jamais sustentou sua argumentação nessa direção.

Mais ainda se considerar o caso Pirara, que apareceu quando Robert Schomburgk, em 1941, convenceu o Governador do Demerara a enviar uma ordem para expulsar os brasileiros daquela região. O Inspetor Geral de Polícia, William Crichton, no cumprimento da missão trouxe uma carta ao Comandante Brasileiro de Fronteira, com ordem expressa de abandonar o Pirara, por ser um lugar ocupado por tribos independentes. Para Nabuco isso significava que a tribo de índios independentes reclamava a proteção da Grã-Bretanha contra o vilipêndio e iniqüidade portuguesas, argumento que inaugurou o litígio e o levou até 1904.

Jamais existiram os guardiões da fronteira nessa região, simplesmente porque os índios sempre foram joguetes das potenciais coloniais para assegurar a posse da região das guianas. Essa idéia, usada e abusada por muitos no contexto atual, é só um mecanismo ilusório do positivismo humanista rondoniano, nada mais que isso.

Em tempo: o Brasil não ganhou terras na Questão Pirara, perdeu sim, toda a região do Rupununi. Depois dos anos 30 do séc. XX, companhias de criação de gado estabelecidas nessa região, estimularam a movimentação de indígenas para o lado guianense; situação que se inverteu com o levante de 1969, em Lethen, e a política de proteção à região encetada por Forbes Burnhan, empurrando-os para o lado brasileiro. Mas esta é outra história.

* Professor adjunto da UERR

(Fonte: Jornal Folha de Boa Vista, de 02 de julho de 2008).