Os estudos direcionados à realidade amazônica são maximizados com o Pacto Amazônico, considerando-se que os temas do Tratado refletem as necessidades mais imediatas da região, a exigir tratamento jurídico especializado: direito ecológico; direito agrário; direito indígena; direito minerário; direito da navegação (fluvial); direito do comércio exterior; e, direito comunitário. Dai a denominação direito amazônico. Interpretar e aplicar o direito de acordo com o contexto regional.

terça-feira, outubro 06, 2009

Justiça Agrária

JUSTIÇA AGRÁRIA: CRIAR OU NÃO CRIAR? EIS A QUESTÃO! (1)
Gursen De Miranda (2)

A vontade política recentemente demonstrada pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, visando a criação da Justiça Agrária no Brasil reavivou o sonho de saudosos juristas e agraristas brasileiros do quilate de um Rui Barbosa, Fernando Pereira Sodero, Paulo Torminn Borges, incluindo-se com manifestação de Caio Mário da Silva Pereira. O fato, sempre atual, motivou agraristas como Raymundo Laranjeira (BA), Octavio Mello Alvarenga (RJ), Luiz de Lima Stefanini (SP), José Sidnei Duarte Machado (RS), Antônio José de Matos Neto (PA), Maria Cecília Ladeira (SP), todos confiantes no apoio antes manifestado por entidades do nível de uma OAB, CNBB, CONTAG, SNA, Federação Interamericana de Advogados, Associação Brasileira de Direito Agrário, Academia Brasileira de Letras Agrárias, dentre tantas outras.

Durante os encontros científicos dos jusagraristas brasileiros a Justiça Agrária é sempre uma reivindicação, conforme a Carta de Cruz Alta, de 1975, elaborada por ocasião do I Seminário Nacional de Direito Agrário, e a Carta de Brasília, de 2002, elaborada durante o X Seminário, inclusive, foi o tema central (Justiça Agrária e Cidadania) do XI Seminário, realizado em São Luis (MA), em junho de 2003.

A repercussão da notícia no exterior provocou o entusiasmo de estudiosos como o Ministro Juan Bautista Bardelli, ex-presidente do Supremo Tribunal Agrário do Peru e Vice-Presidente do Tribunal Constitucional do Peru; Ministro Román José Duque-Corredor, da Corte Suprema de Justiça da Venezuela; Ministro Hugo Bejarano Torrejón, próximo presidente do Tribunal Agrário Nacional da Bolívia; Ministro Enrique Ulate Chacón, do Tribunal Agrário da Costa Rica, dentre outros, incluindo-se o professor Ramón Herrera Campos, de Espanha, presidente da União Mundial de Agraristas Universitários, com sede em Pisa-Itália.

É certo que quase todos os países da América Latina possuem Justiça Agrária. Pequenos territorialmente e acanhados financeiramente, mas com governantes conscientes em proporcionar cidadania ao homem do campo. Para não ser enfadonho, seria suficiente citar o Tribunal Agrário no México, na Costa Rica e na Bolívia.

Nessa linha, cabe destacar que a alegada falta de recursos financeiros para implantação da Justiça Agrária no Brasil não procede. O mesmo argumento foi usado durante a discussão para criação da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral, esta, hoje, um modelo para o mundo. Investiram contra os Tribunais Regionais Federais e atacaram a criação da Justiça Federal, com idêntico argumento. Ocorre que, conforme demonstrou Assis Ribeiro, “a organização e o funcionamento do Poder Judiciário não pode ser apreciado e julgado em termos de despesas”. Ademais, deve-se entender que os recursos financeiros que se pretende aplicar para implantação das varas agrárias federais poderiam, por suficientes, ser usados para implantação da Justiça Agrária que o país realmente precisa, conforme a estrutura prevista na PEC nº 122, de 29 de julho de 2003, em tramitação na Câmara dos Deputados.

No Brasil, 66,7% dos Constituintes de 88 entendiam como necessária a criação da Justiça Agrária. Justiça com estrutura simples, composta de Juiz Agrário, Tribunal Regional Agrário e Tribunal Superior Agrário. No primeiro Projeto de Constituição, de julho de 1987, quando trata da organização do Poder Judiciário, a Justiça Agrária foi prevista no artigo 211, na Seção V, do Capítulo IV. A articulação das “forças ocultas” do país, no entanto, e lamentavelmente, fez desaparecer a Justiça Agrária e surgiu o artigo 126, com o teor seguinte:

“Art.126. Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça designará juízes de entrância especial, com competência exclusiva para questões agrárias.
Parágrafo único. Sempre que necessário à eficiente prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do litígio.”

Comentando o dispositivo constitucional transcrito (in Institutos básicos do direito agrário, 6ª ed, SP:Saraiva, 1991, p. 161) o saudoso mestre Paulo Torminn Borges, então coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás, foi cáustico:

““Considero (...) péssimo que a Constituição não tenha instituído a Justiça Agrária. Isto de Varas especializadas ou entrâncias especiais (...) é engodo. Não resolve nem ajuda. Precisamos, isto sim, é de juízes especializados, isto é, juízes com cabeça de agraristas, juízes com mentalidade agrarista.”

Os agraristas brasileiros entendem que o artigo 126, da Constituição da República, foi a formula encontrada para impedir a efetivação da Justiça Agrária no Brasil; seria uma norma jurídica de anti-justiça agrária.

Os estudos dos nobres agraristas brasileiras, especialmente quanto à delimitação da matéria, com alguns tópicos ajustados pelo A., foram entregues ao deputado federal Rodolfo Pereira, para fundamentar a justificação da proposta de emenda à Constituição de criação da Justiça Agrária no Brasil. Na Câmara dos Deputados a proposta recebeu o número 122/2003 (o senador Augusto Botelho (PDT-RR), no dia 21 de outubro de 2004 apresentou ao Senado Federal proposta de emenda à Constituição (PEC nº 52/2004), com o mesmo teor da apresentada pelo Deputado).

É importante chamar a atenção que o momento de apresentação da PEC 122/2003 não é fruto da afoiteza de um parlamentar, em face da fala do Presidente da República. O trabalho é a sedimentação de estudos de agraristas brasileiros, acolhidos pela Academia Brasileira de Letras Agrárias; a PEC foi apresentada em julho de 2003, bem antes de o Presidente da República externar a necessidade de uma Justiça Agrária no Brasil, em setembro de 2004.

Não se deve abstrair que o julgamento das questões agrárias em todos os graus de jurisdição exige conhecimento do mundo agrário, com realidade própria; as normas jurídicas agrárias exigem interpretação e aplicação de acordo com a realidade agrária; exige o estudo por especialista na matéria; exige jurista com mentalidade agrarista. Chega de improvisação, “a improvisação compromete o desempenho da autoridade”, alertou o mestre Torminn (in op. cit., p. 161). Se existe o civilista, o penalista, o tributarista, o trabalhista, o constitucionalista, nada mais justo que o juiz agrarista. O alerta de um Pontes de Miranda, no caso, é oportuno, pois, antes de ser especialista, o jurista precisa ser um generalista, conhecer da teoria geral do Direito.

Não é demais evidenciar que o direito agrário é ramo do Direito que garante o “pão-nosso” de cada dia; é o direito que garante a produção de alimentos para todas as pessoas, atualmente com segurança alimentar, o alimento em quantidade e com qualidade, da produção ao consumo. Certamente, por esse fato, o direito agrário pode ser entendido na linha dos direitos humanos; se as pessoas necessitam do ar para não morrer, da mesma forma, as pessoas precisam de alimento para viver. É o direito que protege o homem do campo no exercício da atividade agrária, na agricultura familiar e no agronegócio. O direito agrário é o ramo do direito do passado, do presente e do futuro.

Anote-se, por estas razões, exemplos de certas impropriedades terminológicas de juristas sem a devida formação agrarista a merecer reflexão.
Com efeito, é difícil compreender e aceitar a competência das questões agrárias no Brasil (CF: art.126) dividida entre vara agrária estadual e vara agrária federal. O que seriam os conflitos fundiários vinculados ao plano nacional de reforma agrária, para delimitar a competência da vara agrária federal? Por certo, é mais um elemento complicador, longe da melhor solução. É um problema. Ademais, aceitando-se os juizes estaduais e federais para dirimir os conflitos agrários, como ficaria a matéria nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais, em caso de recurso? Será que haveria nos tribunais magistrados especializados, com mentalidade agrarista? É mais um problema.

Para completar a linha de pensamento, cabe lembrar o processo agrário, pois, de nada valerá uma Justiça Agrária se forem utilizados os lentos procedimentos do processo civil. Os juizes agrários, conforme alertava João Paulo Bittencourt, deverão possuir poderes introdutórios bastante amplos, “com sistemas de provas e critérios de apreciação que dêem ao juiz um papel mais ativo, dinâmico e sensível”, observando os princípios de conciliação, localização, economia, simplicidade e rapidez.

Não se pode perder esta oportunidade. A vontade política foi demonstrada pelo Executivo, com a manifestação do presidente Lula. O caminho jurídico está delineado pela comunidade científica brasileira especializada na matéria, com apoio de agraristas estrangeiros, conforme o da PEC nº 122, de 2003.
O momento é de serenidade e de equilíbrio. A pessoa do campo e a sociedade brasileira exigem seriedade. Chega de engodo!

P.S.: Não é diferente a compreensão daqueles que dirigem o Conselho Nacional de Justiça. O presidente do CNJ, ministro Gilmar Mendes, por ocasião da instalação do Fórum Nacional para Monitoramente e Resolução dos Conflitos Fundiários Rurais e Urbanos, no dia 11 de maio de 2009, defendeu a especialização do Judiciário para solucionar conflitos fundiários. O Corregedor Nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, por sua vez, cobrou sensibilidade de magistrados em questões agrárias. Certamente, na linha de atuação do CNJ, a especialização para solução dos problemas agrários, com sensibilidade, somente poderá ser concretizada por meio da criação e instalação da Justiça Agrária, composta por magistrados com mentalidade agrarista.
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1. Manifestação do Autor em reunião do Conselho da Justiça Federal realizada em Costa do Sauípe (Bahia) no dia 15 de outubro de 2004.
2. Presidente da Academia Brasileira de Letras Agrárias. Doutorado em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa. Mestre e Especialista em Direito Agrário (UFGO). Professor-Adjunto da UFRR. Magistrado do Estado de Roraima. Coordenador do Grupo Temático 5 – A atual realidade fundiária brasileira – o Direito Agrário e os conflitos no campo, no Fórum Nacional para Monitoramento e Resolução dos Conflitos Fundiários Rurais e Urbanos, do Conselho Nacional de Justiça.