Os estudos direcionados à realidade amazônica são maximizados com o Pacto Amazônico, considerando-se que os temas do Tratado refletem as necessidades mais imediatas da região, a exigir tratamento jurídico especializado: direito ecológico; direito agrário; direito indígena; direito minerário; direito da navegação (fluvial); direito do comércio exterior; e, direito comunitário. Dai a denominação direito amazônico. Interpretar e aplicar o direito de acordo com o contexto regional.

sábado, julho 19, 2008

Indígena

A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DA DEMARCAÇÃO DAS RESERVAS INDÍGENAS.

Luiz Fernando Menegais

Determina o art. 19 da Lei 6.001, de 1973 que, “as terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo”. Assim, conforme esse preceito legal as terras indígenas foram sempre demarcadas e interditadas através de decreto do Presidente da República (Amapá, Roraima, Amazonas, Goiás, Rondônia e Mato Grosso).

Mas, ocorre que o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) foi editado no regime da Constituição de 1969, que outorgava competência à União para legislar sobre a “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional” (art. 8º, XVII, o). Baseado nesse permissivo constitucional a Lei 6.001/73, foi dirigida direta e exclusivamente para de forma gradativa, concretizar o intuito de convívio harmônico entre índios e as comunidades civilizadas. E porque a Constituição então vigente (CF/1969) não exigia seja de forma implícita ou explícita, que aquela política indianista devesse ser alcançada através de demarcações discutidas e votadas pelo Congresso Nacional, as reservas indígenas foram sendo estabelecidas pela via do processo administrativo.

Com o advento da Constituição de 1988, a nova Carta Política trouxe à matéria tratamento diverso, estendendo, enormemente a competência legislativa para o trato da problemática do índio brasileiro.

Com efeito, enuncia o art. 22, XIV da Constituição Federal de 1988 que “compete privativamente à União legislar sobre populações indígenas”. A expressão, nada obstante curta em seu enunciado, adquire conteúdo jurídico extremamente abrangente, posto que, tudo aquilo que de qualquer forma possa interessar ao índio brasileiro, às populações indígenas, deve necessária e obrigatoriamente ser regulado através de Lei Federal, vinculando o Congresso Nacional à discussão de quaisquer aspectos que digam respeito a essas populações indígenas. É o que peremptoriamente determina a Constituição Federal.

Imprescindível, para concluir que a competência privativa é do Congresso Nacional, fazer-se um breve cotejo entre os artigos 8º, XVII, o, da Constituição de 1969 e o 22, XIV da Constituição vigente. Pois bem, quando o art. 8º, XVII, o, da Constituição de 1969 diz que a lei deverá dispor no sentido da incorporação do silvícola à comunidade nacional, compatível admitir que a demarcação efetuada administrativamente, não vai se afastar do que determina a lei, como previsto no texto constitucional [de 1969]. Presume-se, no caso, que o Poder Executivo ao demarcar determinada reserva observará tal qual determinado o dever de prestar ao índio a assistência necessária a sua integração.

Esta presunção, leva a inarredável conclusão de que, consoante o comando emergente o art. 8º, XVII, o, da Constituição de 1969, perfeitamente admissível que o art. 19 da Lei nº 6.001 de 1973, não teria afrontado, o permissivo constitucional, então vigente, com a intensidade que permitiria um confronto indispensável de inconstitucionalidade.

O mesmo não se pode dizer quando o art. 22, XIV, da vigente Constituição Federal determina que compete privativamente à União legislar sobre populações indígenas. Aqui a, competência é privativa do Congresso Nacional, sem admitir qualquer sofisma. Trata-se, pois, de competência legislativa exclusiva. Competência essa que é repetida no art. 231 quando preceitua que: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Importante destacar que, quando o legislador constituinte diz que a competência legislativa é privativa significa dizer que tal competência é, por sua natureza, exclusiva e unicamente exercida pelo titular dessa competência.

Ademais, o § 5º do art. 231 da Constituição Federal de 1988, prescreve que: “É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantindo, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”.

Vê-se, do permissivo constitucional citado que, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população ou no interesse da soberania do País, e após deliberação do Congresso Nacional, poderá ser demarcada uma reserva substituta sendo essa a conseqüência natural e lógica da remoção proibida.

Ora, se o Presidente da República não pode demarcar aos índios uma reserva substituta, não poderá também demarcar-lhes a área original, posto que, os valores em cotejo, são rigorosamente idênticos.

Se não bastasse, há uma outra razão, que impõe, a audiência do Congresso Nacional, agora para o caso das reservas que se situam em faixa de fronteira.

Mas antes de seguirmos adiante, importante citar o pensamento do então Ministro do Supremo Tribunal Federal Cordeiro Guerra, já preocupado à época, com o que estamos a vivenciar hoje, isto é, um entendimento ampliado, do que seja terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (art. 231, da CF/88).

Segue fragmentos do voto do saudoso Ministro proferido no Pleno do Excelso Supremo Tribunal Federal, onde sua Excelência demonstrava então enorme preocupação, com possível entendimento ampliado do art. 198, da Emenda Constitucional nº 1, de 1969:

“(...) estou de acordo com o eminente relator, mas desejo explicitar a minha apreensão, em face do art. 198, § § 1º e 2º, da Constituição Federal. Creio que esses artigos ainda nos darão muito trabalho, porque, a serem interpretados na sua literalidade, teriam estabelecido o confisco da propriedade privada neste País, nas zonas rurais, bastando que a autoridade administrativa dissesse que as terras foram, algum dia, ocupadas por silvícolas.

Ora, nós somos um País de imigração, um País continental, em que o homem civilizado abre caminho para a criação do seu império. Isto se fez sempre, através da História, à custa do aborígene não só no Brasil, como na América do Norte, na Austrália, na África, na Sibéria, em qualquer parte do mundo.

O que está dito no art. 198 é mais ou menos o que está dito no art. 1º do primeiro decreto bolchevique: ‘FICA ABOLIDA A PROPRIEDADE PRIVADA. REVOGAM-SE AS DISPOSIÇÕES EM CONTRÁRIO’. Isto entra em choque, evidentemente, com o art. 153, § 22, da Constituição Federal, que assegura a propriedade privada. O Código Civil assegura a posse. De modo que toda essa legislação tem de ser interpretada com muito cuidado. Diz-se no § 1º do art. 198:

‘Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou ocupação de terras habitadas pelos silvícolas’.

No meu entender, isto só pode ser aplicado nos casos em que as terras sejam efetivamente habitadas pelos silvícolas, pois, de outro modo nós poderíamos até confiscar todas as terras de Copacabana ou Jacarepaguá, porque já foram ocupadas pelos Tamoios. Diz ainda o caput do art. 198:

‘As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes’.

Pressupõe efetiva a ocupação das terras pelos silvícolas. De modo que, na espécie – há evidente, vários problemas bem ressaltados pelo eminente relator -, entendo que o possuidor legitimado por títulos recebido do Estado, em priscas eras, não pode ser espoliado do fruto de seu trabalho sem indenização. Quando o civilizado invade o território indígena e se estabelece pela força, nesses casos, se há de aplicar os § § 1º e 2º do art. 198, mas não no caso do colonizador, do desbravador do País. Deixo, assim, isto bem claro, como avant prémiere do meu pensamento, porque não me deixo levar por um sentimentalismo mal orientado, que pode conduzir à atrofia do País, ou a inquietação rural, com resultados imprevisíveis.

De modo que, sem apreciar o merecimento da causa, não quero negar, e nem haveria como, que o Estado tem direitos de criar reservas indígenas, mas o próprio Estatuto do Índio prevê que não pode fazê-lo abruptamente sem pagamento, sem indenização dos titulares da terra, possuidores deste local” (MS nº 20.234 – Mato Grosso. Acórdão de 4.7.1980, Pleno – g. n.).

Mas, volvemos a demarcação das terras indígenas em faixa de fronteira prevista no art. 20, § 2º da Constituição Federal de 1988.

Prevê o referido § 2º do art. 20, que:

‘São bens da União:
(...)
Parágrafo 2º. A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para a defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei’.

Inicialmente, cumpre ressaltar que, a República Federativa do Brasil possui como um de seus fundamentos a sua soberania (CF, art. 1º, I), princípio basilar do Estado Democrático de Direito, que não admite sob qualquer justificação, afronta.

Reside aqui, maior razão para a audiência do Congresso Nacional, diante da localização da reserva indígena situar-se na faixa de fronteira. Essa faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, é considerada fundamental para a defesa do território nacional, e a sua ocupação e utilização, consoante o disposto no § 2º do art. 20 da Constituição Federal, obrigatoriamente deverá ser regulado em lei.

E quando o legislador constituinte diz que a ocupação e utilização da referida faixa de fronteira deve ser regulada em lei, significa dizer que determinadas matérias há de fazer-se necessária e obrigatoriamente através de lei formal. Estamos diante do princípio da reserva de lei, ou reserva legal.

Aliás, o prof. José Afonso da Silva, elucida a questão de forma irrepreensível. Senão vejamos:

Após diferenciar o princípio da legalidade e o da reserva de lei, no sentido de que o primeiro significa a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador; e o segundo consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias há de fazer-se necessariamente por lei formal, o e. constitucionalista complementa que:

É absoluta a reserva constitucional de lei quando a disciplina da matéria é reservada pela Constituição à lei, com exclusão, portanto, de qualquer outra fonte infralegal, o que ocorre quando ela emprega fórmulas como: ‘a lei regulará’, ‘a lei disporá’, ‘a lei complementar organizará’, ‘a lei criará’, ‘a lei poderá definir’ etc. (Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 24ª edição, revista e atualizada, 2005, pp. 423/424 - g. n.).

Portanto, quando a Constituição Federal prevê de forma clara e inequívoca que a ocupação e utilização da faixa de fronteira serão reguladas em lei, é porque [como dito] entende o legislador constituinte tratar-se, no caso, de matéria que por sua importância estratégica e interesse geral, é reservada à lei, excluindo, portanto, qualquer outra forma de disciplina.

Ora, a expressão contida na parte final do § 2º, do art. 20 da CF/88, ou seja:... sua ocupação e utilização serão reguladas em lei, não admite outra interpretação que não, àquela de que a ocupação e utilização de faixa de fronteira, serão reguladas em lei; LEI FORMAL, sujeita ao crivo do Congresso Nacional.

Aliás, importante destacar que em nenhum dos vinte e sete incisos contidos no art. 84 da CF/88, que trata das atribuições privativas do Presidente da República, existe competência para demarcar reservas indígenas.

Ademais, o art. 91, § 1º, III, da Constituição Federal determina que, “compete ao Conselho de Defesa Nacional: (...) propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo”;

Vê-se pois, que inobstante seja o Conselho de Defesa Nacional tão-somente órgão de consulta, sua participação torna-se indispensável, principalmente naquelas áreas ditas indispensáveis à segurança do território nacional, bem como também naquelas [áreas] relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais.

Não há dúvida, que os povos indígenas têm o direito sobre as terras por si tradicionalmente ocupadas, mas esse direito não é absoluto, posto que, sopesados com outros direitos; por exemplo, segurança nacional, àqueles [direitos indígenas] devem necessária e obrigatoriamente ceder a estes [soberania nacional].

Em conclusão, as reservas indígenas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser demarcadas através de lei federal, conforme preceitua o art. 22, XIV da CF/88, razão pela qual urge sejam revistas todas as demarcações efetuadas após o advento da Carta Cidadã de 1988. Com maior razão quando as reservas se situarem em faixa de fronteira.

(Fonte: jornal Folha de Boa Vista, de 19 de julho de 2008).