Os estudos direcionados à realidade amazônica são maximizados com o Pacto Amazônico, considerando-se que os temas do Tratado refletem as necessidades mais imediatas da região, a exigir tratamento jurídico especializado: direito ecológico; direito agrário; direito indígena; direito minerário; direito da navegação (fluvial); direito do comércio exterior; e, direito comunitário. Dai a denominação direito amazônico. Interpretar e aplicar o direito de acordo com o contexto regional.

segunda-feira, julho 06, 2009

Cotas racistas - Amazônia mestiça

AS COTAS RACISTAS NA UNIVERSIDADE
José Maria Souza *

A política de cotas para as universidades públicas, apesar da ‘boa intenção’, poderá criar, a médio e longo prazo, terreno fértil para o reforço e disseminação de idéias racistas, antes bastante disfarçadas e só manifestadas de maneira indireta e envergonhada por alguns.

No final de abril foi noticiado que, aprovado na Câmara Federal, foi enviado para o Senado projeto de lei que determina a adoção de cotas para pobres nas universidades federais. Na verdade a coisa é mais complexa, pois a adoção de cotas vem sendo debatida desde o final do governo FHC e início da era Lula; primeiro com a proposta de adoção das cotas para negros e depois, quando foram apresentados dois projetos de lei (PL), o PL 615/2003 e PL 1313/2003, propondo as cotas para índios. Em 2004 foi apresentado o PL 3627/2004, ampliando essas cotas para estudantes oriundos das escolas públicas, mas incorporando as idéias anteriores de cotas raciais.

Segundo consta desse projeto, as universidades públicas reservariam 50% de suas vagas a estudantes egressos das escolas públicas obedecendo, entretanto, a exigência de cotas para os auto declarados pardos, negros ou índios, segundo a proporcionalidade dessas colorações da pele em cada Estado, conforme os dados mais recentes do IBGE. Segundo esse projeto de lei, por exemplo, Roraima colocaria à disposição de índios l0% das vagas, e outros estados teriam outros percentuais. Idem para negros e pardos.

É difícil rastrear todas as intervenções do executivo e do legislativo nesse assunto tão polêmico. Só para se ter uma ideia, até o ano passado existiam na Câmara vinte e oito projetos de lei sobre as cotas e quatro no Senado. Vários desses projetos foram apensados no PL 3627/2004, tornando difícil o acompanhamento cronológico desses projetos de lei pelos mortais comuns. Ao que tudo indica, depois de audiências públicas, debates, etc, procura-se agora chegar a um acordo.

Quando da apresentação do PL, a sua justificativa era que, desde 1967, o Brasil é signatário da Convenção Internacional da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. De acordo com essa convenção o Brasil se comprometeria a implementar ações afirmativas como forma de promover a igualdade racial e incluir grupos historicamente excluídos do processo de desenvolvimento social. Ou seja, o argumento principal para a existência das cotas seria o resgate de uma situação histórica injusta e até cruel a que foram submetidos os negros e os índios, devido ao regime de escravidão e vários outros tipos de opressão desde o descobrimento até hoje.

Estranhamente não se havia cogitado os pobres, cuja formação também tem raízes históricas bastante conhecidas. Grande parte dos pobres do campo era formada, inicialmente com a monocultura da cana, e posteriormente do café, pelos chamados “homens pobres livres”. Estes habitavam e trabalhavam nas bordas das enormes propriedades, com a permissão dos latifundiários, cultivando gêneros de subsistência na forma medieval da parceria (meia, terça etc.), para o abastecimento dessas grandes propriedades, já que o trabalho escravo era utilizado quase exclusivamente na monocultura.

Com a industrialização, durante o século XX, na falta de uma reforma agrária digna desse nome, na época oportuna e necessária, grande parte dessa população rural (que era a esmagadora maioria da população total do país) transferiu-se para as cidades em busca de emprego, invertendo, com o tempo, o percentual das populações urbana e rural em relação à total. As conseqüências disso estão aí para todos verem: miséria, violência, ignorância e tudo mais.

Agora, tentando mostrar coerência histórica, busca-se criar as cotas para pobres através da reserva de vagas para estudantes vindos das escolas públicas. Mas essa coerência é tão perniciosa quanto o paternalismo anterior que excluía das cotas os pobres que não fossem negros nem índios.

Uma das críticas a essa ‘política de inclusão social’ é que depois da abolição da escravidão, quando seria de esperar que o racismo aos poucos se extinguisse, as classes dominantes atuais, na contra mão do bom senso, estariam tentando ressuscitar o racismo. Essas idéias de ‘inclusão’ são tão absurdas que conseguem ser racistas nos dois sentidos. Por um lado, estabelecendo privilégios com base na cor da pele, pelo outro sugerindo que negros e índios seriam menos inteligentes que os demais. A crítica que tentaremos apresentar em seguida, tem base naquilo que se pode chamar de ‘efeito bumerangue’, ou seja, os efeitos dessa política vão se voltar contra os que se supõe beneficiar.

Sempre se soube que o critério para o ingresso e permanência na vida acadêmica e para o exercício de profissões de nível superior é a excelência. Os órgãos corporativos (OAB, CRM, CREA etc.), de uma forma ou de outra, estabeleceram critérios para o exercício profissional, e esses critérios são baseados no mérito (pelo menos é assim que se quer e se diz ser).

Se o que se pretende é a inclusão social desses contingentes da população, tudo indica que o efeito será efêmero e, a longo prazo, desastroso; isto porque, com o passar dos anos e de forma permanente, acabará por excluir e estigmatizar muitos profissionais. Na hora de cuidar da sua saúde, por exemplo, você daria preferência a um médico negro, sabendo que ele pode ter entrado na universidade através das cotas? Quando fosse construir a sua casa daria preferência a um engenheiro indígena, que pode ter entrado pela cota? Sentirá mais calafrios do que o normal ao entrar em um consultório dentário para fazer um tratamento de canal quando se deparar com um dentista negro ou de origem indígena? Mesmo que profissionais negros ou índios tenham ingressado na universidade por mérito próprio e sejam bons profissionais, permanecerá a dúvida e muitos deles serão discriminados, carregarão injustamente a pecha de ter ingressado através das cotas e, por conseqüência, terão a sua “inclusão” prejudicada.

Qual seria uma política alternativa à das cotas? A única eficaz, embora seja de longo prazo, é o investimento maciço, persistente e criterioso em educação pública, sobretudo nos locais em que residem as populações pobres (independente se são negros, índios, “pardos” ou “brancos”). Esse investimento não consiste só na aplicação de recursos financeiros, embora isso seja indispensável.

Desde 1996, com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação nossos educadores mostraram muita competência ao elaborar uma ampla e moderna reforma pedagógica do sistema educacional, para ser adotada como política governamental dali por diante. Oficialmente essa reforma está em vigência. Entretanto, nós professores sabemos que, na maioria das escolas públicas, isso é apenas um discurso, pois não existem as condições materiais e de pessoal para que, depois desses anos todos, essa reforma pudesse ter melhorado sensivelmente o ensino.

Investir em educação, portanto, é também intensificar a implementação dessa reforma, apoiando os sistemas municipais e estaduais de ensino para modernizar e fortificar as escolas públicas, sobretudo nos locais mais carentes, onde estudam os negros, os índios e os pobres de todas as tonalidades.

Existem providências parciais e imediatas, dentro de uma política de melhoria da educação pública, se realmente se pretende ‘incluir’ essas pessoas. Só como exemplo: porque não investir para que toda escola pública mantenha cursos intensivos de preparação para o vestibular, concomitante com a última série do ensino médio, para os seus alunos, independente de serem negros, índios, pardos ou brancos? Não seria esta uma maneira eficiente e justa de mitigar o ‘remorso histórico’ de nossas classes dominantes, sem que seja necessário insistir no humilhante privilégio das cotas racistas?

Apesar de que essas cotas, tal como existem, se constituam em um privilégio descabido e vergonhoso, há, talvez, alguns poucos casos em mecanismos de inclusão poderiam ser admitidos: é sabido que comunidades isoladas, como algumas aldeias indígenas e remanescentes dos quilombos, entre outras, são carentes de educação e saúde, pois muitos profissionais não aceitem deixar suas famílias e suas vidas na cidade pelo trabalho em lugares tão distantes e isolados. Para suprir a falta de profissionais nesses locais isolados, seria admissível reservar o número necessário de vagas para a formação de profissionais radicados nessas comunidades, para que lá atuassem contribuindo para formação dessas pessoas que hoje não são atendidas pelo poder público.

Há, portanto, outras maneiras de resgatar a injustiça histórica que grande parte da população atual do Brasil herdou, sem que o governo seja displicente e relapso no seu dever de propiciar educação de qualidade a todos, independente se é mais ou menos pobre, se tem a pele escura ou os olhos repuxados.

* Professor de Física - jomacoso@hotmail.com