Os estudos direcionados à realidade amazônica são maximizados com o Pacto Amazônico, considerando-se que os temas do Tratado refletem as necessidades mais imediatas da região, a exigir tratamento jurídico especializado: direito ecológico; direito agrário; direito indígena; direito minerário; direito da navegação (fluvial); direito do comércio exterior; e, direito comunitário. Dai a denominação direito amazônico. Interpretar e aplicar o direito de acordo com o contexto regional.

sexta-feira, setembro 16, 2005

A IDÉIA DE UM DIREITO ... AMAZÔNICO

A IDÉIA DE UM DIREITO ... AMAZÔNICO



O mundo da cultura é compreensão. Compreender os fatos para evoluir em sociedade, consciente de sua problemática. Não é diferente com o direito amazônico.

Em certo momento, um de meus assistentes de pesquisa, o acadêmico de direito Frederico Matias Honório Feliciano, questionou como teria sido idealizado o direito amazônico. Demonstrei ao jovem pesquisador que o processo de criação cultural é fruto da compreensão do contexto social numa dimensão geográfica, considerando a sedimentação histórica de determinado grupo social.

Em verdade, falar de direito amazônico é falar da Amazônia, é falar de minha vida, principalmente no que tange a minha infância e adolescência que passei pensando e falando nos rios, furos, paranás, igarapés, florestas e nos campos do meu Marajó; aprendendo a lidar com a natureza e dela retirando ensinamentos fundamentais para minha existência.

Direito Amazônico é um sonho de “caboco” (na Amazônia caboclo é coisa de dicionário).

Talvez por ter nascido no centrão do Marajó, aquela ilha de quase 50.000km² na “boca” do rio Amazonas, tenha trazido imenso sentimento pelas pessoas e coisas da Amazônia. Fomos para cidade grande (no caso Belém) porque minha mãe convenceu meu pai que queria que seus filhos fossem sabidos (já éramos cinco, a mais velha com oito anos de idade).

No ano de 1977, quando trabalhei como técnico em estradas no Departamento de Estradas de Rodagem do Estado do Pará, no trecho que liga a localidade de Barro Branco às margens do rio Capim, no município de Castanhal, fiquei “marcado” com uma cena estarrecedora: ao chegar ao trecho havia uma densa floresta margeando o caminho da futura rodovia; após quatro meses, presenciando imensos incêndios na mata, deixei o “campo” com a lembrança de grandes derrubadas e um vazio na floresta à beira da estrada – o vazio permanece em minhas lembranças.

Durante o curso de direito tive a oportunidade de trabalhar com o advogado Camillo Montenegro Duarte que, em conversa inicial, em outubro de 1979, quis saber sobre a área jurídica de minha preferência. De forma até pretensiosa falei em direito agrário e direito ambiental. Trabalhei na área agrária.

Motivado pela experiência no trato com o direito do agro, em maio de 1981 participei, em Belém, do 1º Encontro Internacional de Jus-Agraristas, oportunidade em que vi grandes agraristas nacionais e estrangeiros. Lembro bem de Duque Corredor, Sanz Jarque, Otto Morales Benitez, Raymundo Laranjeira, Octavio Mello Alvarenga, Fernando Pereira Sodero, Mecias Junqueira, Paulo Torminn Borges, Aldo Asevedo Soares.

Aproveitando o momento, em agosto daquele ano, iniciei o Curso de Especialização em Direito Agrário, na Faculdade de Direito, da Universidade Federal de Goiás, sob a coordenação do professor Paulo Torminn. Fui, mas deixei registrado que iria voltar, para aplicar na Amazônia os conhecimentos adquiridos. Os clientes para quem prestava assessoria na área agrária não acreditaram muito em minha aventura acadêmica, porém, destacaram a importância da questão ambiental no contexto amazônico. Durante o curso de especialização procurei desenvolver alguns estudos direcionados à realidade da região: Reforma Agrária: conceito e métodos (1º semestre de 1982); Ecologia - Conservação dos recursos naturais renováveis (2º semestre de 1982).

Ao retornar para Belém tive a chance de trabalhar com o doutor Benedicto Monteiro, na Procuradoria Geral do Estado do Pará, quando fui coordenador geral da Defensoria Pública. O trabalho social foi intenso na defesa do débil econômico. Visitei quase todos os municípios do Estado, para organizar a Defensoria, estruturar sindicatos de trabalhadores (especialmente rurais), conhecer in loco a problemática fundiária, com destaque à região sul do Estado, em Marabá.

Quando realizei o mestrado, novamente na Universidade Federal de Goiás, aprofundei meus estudos sobre a questão fundiária na Amazônia, com o foco no sul do Pará. Transformei em jurídico as pesquisas sociológicas existentes, especialmente de Otávio Ianni e José de Souza Martins, e escrevi o livro A figura jurídica do posseiro, lançado em maio de 1988, por ocasião do V Seminário Nacional de Direito Agrária, que coordenei. Depois escrevi minha dissertação sob o tema O instituto jurídico da posse agrária, lançada em forma de livro em abril de 1992. Em maio de 1989 havia lançado o livro Teoria de direito agrário, fruto de anotações para ministrar a disciplina direito agrário, no Curso Oficial de Preparação de Juízes, da Escola Superior da Magistratura do Estado do Pará.

Durante o Curso de Extensão em Direito Agrário em Belém, no mês de novembro de 1988, para advogados do Instituto de Terras do Pará (ITERPA) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), além de outros interessados, um advogado indagou sobre a peculiaridade da questão indígena em Roraima. Confesso que duvidei das afirmações do profissional, mostrando que a questão indígena na Amazônia, e de resto no Brasil, deveria receber o mesmo tratamento, tanto no Pará como em Roraima.

As dúvidas do advogado Juscelino K. Pereira sobre os índios de Roraima, justo é registrar, levaram-me a expor a questão ao professor Raymundo Laranjeira que sugeriu um estudo da questão indígena por mim, considerando haver nascido na Amazônia. Conversando com outros amigos agraristas, especialmente com José dos Santos Pereira Braga, de Manaus, e, Roman José Duque Corredor, da Venezuela, eles me incentivaram em pesquisar o tema em Roraima, destacando a boa condição da cidade de Boa Vista e a boa perspectiva de pesquisa.

Cheguei à Terra de Macunaima em novembro de 1991, para tomar posse como juiz de direito. No início do ano seguinte (fevereiro 1992) assumi como professor-assistente de Direito da Universidade Federal de Roraima (UFRR), onde, imediatamente, formei um grupo de pesquisa com acadêmicos (Adelaid Pereira, César Gonella, Sued Almeida, Vick Mature e Vivaldo Barbosa), para pesquisar a questão indígena em Roraima sob a ótica jurídica. Andanças pelos lavrados (os campos gerais de um Lobo D’Almada), serras, florestas, deram boa visão desse pedaço da Amazônia. Mais de oitenta malocas foram visitadas (wapixana, taurepang, ingaricó, macuxi), em busca dos elementos nativos na formação étnica de um povo. O resultado da pesquisa consta em dois livros: um jurídico, publicado em setembro de 1994 (O direito e o índio), e, um com pretensão histórica, publicado em julho de 2002 (historiando a terra de Macunaima – a questão indígena).

Naquele mesmo ano de 1994 fui convidado pelo amigo Hélio Roberto Novoa da Costa para proferir conferência sob o tema O direito agrário e a questão ambiental no Seminário Internacional de Direito Agrário e Política de Terras – 30 Anos do Estatuto da Terra, promovido pelo INCRA e, realizado em Recife (PE), no período de 30 de novembro a 02 de dezembro. Ser amazônida e estudioso do direito agrário, por certo, foi a razão do convite. O tema do Seminário propiciou atualizar a pesquisa que havia realizado em 1982, em face da Política Nacional Ambiental implantada no País, e a nova Constituição brasileira de 1988. Durante o Seminário recebi o incentivo de vários colegas agraristas para publicação do trabalho apresentado. Somente no início do segundo semestre de 1995 decidi convidar cinco acadêmicos de Direito da UFRR (Emerson Medeiros, Halisson Alex Bezerra Barreto, Janaína Debastiani, Michele Miranda de Albuquerque e Rárison Tataíra), para realizarmos uma pesquisa sobre a questão ambiental numa visão jurídica. Seria mais uma experiência de iniciação à pesquisa objetiva com acadêmicos de Direito, no verdadeiro sentido globalizante da educação, com estudo, extensão e pesquisa. O trabalho resultante da pesquisa foi vencedor do “Prêmio para o Meio Ambiente ‘Buriti da Amazônia’, categoria Trabalho Literário – 1996”, posteriormente, em 2003, o livro foi publicado pela Forense com o título Direito agrário e ambiental.

Os estudos direcionados à realidade amazônica, que até então vinha realizando, foram maximizados com a pesquisa que fiz sobre o Pacto Amazônico, em 1995, para proferir palestra no 1º Encontro das Assembléias Legislativas da Região Amazônica, na cidade de Rio Branco (AC), no dia 1º de setembro. Os temas do Tratado refletem as necessidades mais imediatas da região, a exigir tratamento jurídico especializado.

Nesse momento despertei para idéia e resolvi denominar o conhecimento na área jurídica pertinente a Amazônia de direito amazônico. Seria a sistematização jurídica regional, pertinente à realidade amazônica. Imaginei, com a audácia peculiar, uma classificação jurídica mais realista que um direito público ou um direito privado. Interpretar e aplicar o direito de acordo com o contexto regional.

Em verdade, todo conhecimento adquirido durante minha formação intelectual, procurei contextualizar no universo amazônico, no fazimento de um direito amazônico.

Em maio de 1998 apresentei ao departamento de direito da UFRR um projeto de curso de especialização em direito amazônico onde procuro estabelecer as disciplinas pertinentes à nova sistematização jurídica: direito ambiental; direito agrário; direito indígena; direito mineral; direito da navegação (fluvial); direito do comércio exterior; direito comunitário; e, estudos de problemas regionais.

Durante o VII Congresso Mundial de Direito Agrário, promovido pela União Mundial de Agraristas Universitários, nas cidades de Pisa e Siena, na Itália, no período de 5 a 9 de novembro de 2002, após proferir palestra sobre Direito Agroalimentário - A casa de farinha como atividade agroindustrial típica da Amazônia, onde faço referências a um direito amazônico, o professor Duque Corredor, da Venezuela, e o professor Santos Dito, do Equador, convenceram-me a realizar um encontro jurídico de direito amazônico, na Amazônia, para discutir o tema. O incentivo do professor Raymundo Laranjeira, na francesa cidade de São Luis do Maranhão, em junho de 2003, durante o XI Seminário Nacional de Direito Agrário, foi decisivo para consolidação da idéia.

Ao assumir a presidência da Academia Brasileira de Letras Agrárias, em dezembro de 2002, adotei como principal projeto a promoção de um Congresso sobre Direito Amazônico. Seria a forma de construir o estado da arte do direito amazônico e discutir temas pertinentes à realidade da região.

No período de 29 de março a 02 de abril de 2004 foi realizado na cidade de Boa Vista, a bela capital do Estado de Roraima, o I Congresso Internacional de Direito Amazônico, com a participação de juristas dos países da Pan-Amazônia, do Brasil, de Portugal, Espanha e Itália. É o reconhecimento formal da comunidade jurídica nacional e internacional sobre a existência de um novo Direito.

Organizei o livro Direito Amazônico – construindo o estado da arte, lançado à guisa de anais do I Congresso Internacional de Direito Amazônico, o qual registra o entendimento inicial dessa forma jurídica de pensar a Amazônia. No mesmo ano de 2004 os professores José Santos Ditto e Román José Duque Corredor lançaram o livro Teoría General del Derecho Agrario Andino y Amazónico. Na cidade de Tarija, Província Cercado, Bolívia, no período de 26 a 29 de maio de 2004, o professor Hugo Bejarano Torrejón, coordenou o Segundo Seminário Internacional de Direito Agrário, com enfoque ao Direito Amazônico.

O dinamismo, a seriedade e a competência do prof. dr. Antônio José de Mattos Neto, por certo, tornaram realidade o II Congresso Internacional de Direito Amazônico, realizado na histórica cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará, no período de 15 a 18 de maio de 2005, com a participação de renomados juristas nacionais e estrangeiros.

A boa árvore continua a produzir bons frutos. O prof. dr. José dos Santos Pereira Braga deverá realizar na cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas, em maio de 2006, o III Congresso Internacional de Direito Amazônico. O professor Juan Bautista Bardelli, do Peru, pretende realizar um Congresso de Direito Constitucional Amazônico, no segundo semestre de 2005.

Acreditem. Na Amazônia existem seres pensantes.


Terra de Macunaima (Boa Vista – Roraima, Amazônia - Brasil); em maio de 2005.



Prof. MSc. Alcir Gursen De Miranda

Presidente da Academia Brasileira

de Letras Agrárias

segunda-feira, setembro 12, 2005

DA PROPRIEDADE INDIVIDUAL À PROPRIEDADE SOCIAL

DA PROPRIEDADE INDIVIDUAL À PROPRIEDADE SOCIAL

Gursen De Miranda*


Dominium est ius utendi, fruendi et abutendi de sua, quatenus iuris ratio patitur.

Na antiga Roma a propriedade constituía um direito absoluto e perpétuo, exclusivo de seu titular. Domínio é o direito de usar, fruir e abusar da coisa, da forma mais ampla possível, seria a máxima no direito romano.

Na Idade Média o princípio romano foi mantido. A propriedade refletia o poder absoluto do senhor feudal sobre suas terras e sobre o destino das pessoas que nela moravam ou trabalhavam. O limite do direito de propriedade do senhor feudal era definido por sua vontade.

É a visão absolutista do direito de propriedade, recepcionada pelo Código Civil francês, de 1804 – código napoleônico –, e difundida para o mundo ocidental, conforme expressão em seu artigo 544, em sua primeira parte: “A propriedade é o direito de gozar e dispor da coisa da maneira mais absoluta”.

Seria conseqüência da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, que considerou a propriedade um direito inviolável e sagrado, nos termos de seu artigo 17: “Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, salvo quando o exigir evidente a necessidade pública, legalmente comprovada, e sob a condição de uma indenização justa e anterior.”

Constata-se, portanto, que a famosa Revolução Francesa em nada alterou a concepção filosófica da propriedade imobiliária vinda dos romanos, mas, apenas mudou o seu titular, da nobreza e do clero, para burguesia (comerciantes).

O código italiano, de 1865, da mesma forma, definiu a propriedade como o direito de gozar e dispor do bem de modo absoluto.

A propriedade é o direito mais absoluto, festejaram os civilistas brasileiros com o código civil, de 1916, que consagrou o princípio, nos termos do artigo 524: “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua.” A lei, assim, estabelecia um direito, mas não estabelecia seus limites. Era a linha ideológica adotada pela Constituição do Império (1824), conforme seu artigo 170, inciso XXI: “é garantido o direito de propriedade em toda sua plenitude”. Idéia mantida pela primeira Constituição da República, na forma do artigo 72, § 17: “o direito de propriedade mantém-se em toda sua plenitude”.

A propriedade, assim, constitui-se em direito subjetivo de seu titular.

Caracteristicas da propriedade.

Na linha de entendimento sendimento pela doutrina, a propriedade, tradicionalmente, em qualquer de suas faces e de maneira geral, apresenta algumas características que o diferem de outros direitos:

Absoluta – é oponível erga omnes, contra tudo e contra todos. O proprietário exerce seu direito de forma plena, independentemente de outra pessoa.

Perpétua – não se extingue pelo uso, acompanha o proprietário até a sua morte.

Exclusiva – não admite a cumulação de dois ou mais domínios sobre a mesma coisa, ou seja, apenas o proprietário tem o direito de dispor da coisa.

Geral – o proprietário pode tudo sobre a coisa, salvo as exceções legais.

Coletiva – abrange uma série de direitos.

Unitária – a coletividade de direitos que giram na propriedade estão reunidos e unificados na propriedade.

Elástica – pode reduzir-se a certo mínimo ou alcançar um máximo, sem deixar de ser propriedade.

Poderes, limites e obrigações na propriedade.

Conforme os ensinamentos de um Pontes de Miranda (Tratado: 11), o ordenamento jurídico, muitas vezes, limita o conteúdo da propriedade privada, aquém do que teria de ser o conteúdo do direito de propriedade.

O ordenamento jurídico, quando delimita o conteúdo do direito de propriedade, procura estabelecer normas jurídicas para definir até onde vêm ou podem vir as incursões dos outros. É a limitação, civil e administrativa.

Diferentemente é a função social da propriedade, com força constitucional, que é o dever de exercitar o direito. Se é o direito civil que atribui os poderes ao proprietário, de outro lado, é a Constituição que impõe as obrigações, por meio da função social da propriedade.

Realmente, “a função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito, ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade” (Silva, 1994: 254).

Esclarece Pontes que usar, gozar e dispor são poderes que se contêm no direito de propriedade que persistem, mesmo se o limite ou a restrição (negocial) atinge alguns desses poderes.


Certamente, o absolutismo da propriedade sofreu um corte ideológico com a construção da filosofia da função social, no início do século XX.

PROPRIEDADE SOCIAL

PROPRIEDADE SOCIAL

Gursen De Miranda*



Mutação do conteúdo da propriedade.

Plagiando García Máynez (1980: 295), quando estuda sanção e coação, é possível afirmar que a função social é inerente ao direito de propriedade, não limita nem restringe o direito, ou seja, a função social é um elemento essencial à propriedade. A função social não é um elemento externo da propriedade, diferentemente, é um elemento interno, que define sua estrutura e essência.

Quando se fala em propriedade deve-se entender a função social que ela tem a cumprir, independentemente da vontade ou do interesse do proprietário. O social deve sempre prevalecer, considerando que a função social da propriedade é um princípio constitucional, de ordem pública, de aplicação imediata, cogente.

Ademais, “cumprir os requisitos que abrangem o princípio da função social da propriedade é exigência ínsita a todo imóvel ... rural no País. Por via de conseqüência, todo proprietário de bens imóveis, para que se diga titular desse direito, tem, antes, de atender aqueles dispositivos constitucionais, uma vez que a condição de satisfação social que acompanha o bem se traduz em obrigação superior para quem lhe é titular” (Barros: 40).

A função social, atualmente, define o conteúdo da propriedade: social; solidária; ambiental; econômica.

A função social da propriedade, portanto, é um princípio jurídico consagrado constitucionalmente que transcende a ordem social, para definir a ordem econômica e política do Estado, como fundamento de seu desenvolvimento com justiça social.

Acrescente-se que a função social, “abrangendo a gestão econômica, a exploração, não se circunscreve apenas ao proprietário, mas se estende a todas as pessoas e situações que estejam compreendidas nessas definições, ipso facto, aderindo não só a propriedade, porém ainda a posse” (Gil: 174).


Solidarismo de Lèon Duguit.

Tratado de Direito Constitucional, de 1901.

Para o constitucionalista e administrativista francês a propriedade não é um direito subjetivo do proprietário, mas a função social do detentor da riqueza.

Duguit procurou demonstrar que a propriedade individual vai perdendo, aos poucos, o caráter absoluto e intangível dos primeiros tempos, para tornar-se uma situação objetiva, constituída, antes de tudo, de deveres impostos aos proprietários, cujas prerrogativas estão condicionadas à satisfação desses deveres e que devem cair, entretanto, diante da utilidade pública, entendida no sentido amplo. Acrescenta que o direito positivo não protege o pretendido direito subjetivo do proprietário; porém garante a liberdade do possuidor de uma riqueza para cumprir a função social que lhe incumbe pelo fato mesmo dessa posse.

Duguit, no entanto, “primou pela preservação de qualquer tipo de propriedade privada, esta concebida como basicamente necessária à organização econômica” (Laranjeira, 1975: 119).

Nessa linha, a tendência contemporânea do Direito é para a socialização da propriedade, porém, sem a supressão da propriedade individual.

Não se deve abstrair, em um estudo sobre a função social da propriedade, que Platão, em sua República, procurou mostrar que os bens de uma sociedade pertencem a todos os membros dessa mesma sociedade.


Antecedentes: Sociologia Positivista.

Em seus escritos no Sistema de Política Positiva, de 1850, Auguste Comte defende a “necessidade de intervenção do Estado na propriedade privada por ter ela uma função social”.

Para Comte há na propriedade uma indispensável função social, destinada a formar e a administrar os capitais por meio dos quais se prepara cada geração os trabalhos da seguinte, destacando que esta concepção enobrece a posse, sem restringir sua justa liberdade, e até a faz respeitar melhor.

É certo que, em meados do século XIX, a conjuntura social, econômica e política era propícia à novas reflexões sobre a concepção filosófica da propriedade.

PROPRIEDADE SOCIAL II

PROPRIEDADE SOCIAL II

Gursen De Miranda*



Evolução econômico-social e política.

A transformação da propriedade individual em propriedade social confunde-se com a evolução do próprio Estado, por esta razão, o direito de propriedade que tradicionalmente foi objeto de estudo dos privatistas (civilistas), passou a merecer a atenção, também, dos publicistas (constitucionalistas e administrativistas). É a chamada publicização da propriedade, aliás, está ocorrendo, em verdade, a publicização do Direito.


Revolução Industrial, de 1757-1860 (Inglaterra).

O Estado Liberal consagrou o liberalismo econômico de Adam Smith (A Riqueza das Nações, de 1776), ou seja, o Estado mínimo não intervencionista. O teórico acreditava na livre concorrência, como fator de equilíbrio da produção, distribuição da renda e remuneração do trabalho.

A concepção individualista da propriedade em um Estado mínimo impedia qualquer tipo de ingerência no patrimônio particular, passado a ser garantido como direito intocável na maioria das constituições européias. O direito de propriedade é consagrado como absoluto, personalíssimo e individualista.

A perversa relação capital/trabalho nas indústrias européias, principalmente na Inglaterra, com o trabalho em regime de semi-escravidão de crianças, mulheres e idosos provocou reação. Não foi possível conter a insatisfação da maioria oprimida pela falta de amparo e pela exploração de sua força de trabalho.

Em campo tão fértil cpmeçaram a surgir idéias de implementação de um sistema de proteção estatal contra o abuso econômico.


Manifesto Comunista, de 1848.

Socialismo de Karl Marx.

Por ocasião do Congresso da Liga Comunista, realizado em Londres, em 1847, foi encomendado a Karl Marx e a Friedrich Engels um documento para servir de programa teórico e prático de um partido político, em face do caos social instalado com a conhecida revolução industrial. O trabalho foi entregue no ano seguinte (1848), escrito em alemão, sob o título Manifesto Comunista. O sucesso foi imediato e transformou-se no documento político mais importante do mundo.

O manifesto pregava diretamente “a abolição do direito de propriedade”, ou seja, a propriedade da terra não poderia ser individual, considerando-se que a terra é um bem de produção. A idéias de Marx estavam centradas na coletivização das riquezas.

Pelo ideal marxista “determinados bens devia ser retirados da proprieade privada, em geral, sendo socializados os meios de produção fundamentais; de modo que daí pudesse ocorrer a identidade dos fenômenos “produção coletiva” – “apropriação coletiva”, e por isso se chegando a inclusive atingir o regime da propriedade não individual da terra” (Laranjeira, 1975: 119).

A igualdade jurídica e formal perante a lei passou a ser insuficiente, por isso, buscava-se a igualdade material, no âmbito econômico-social.

Os extremos estavam postos: ter ou não ter propriedade.

Existia, naquela época, pensadores que defendiam restrições à liberdade econômica, fundamentados nos ensinamentos de Aristóteles, porém, sem suprimir a propriedade privada.

PROPRIEDADE SOCIAL III

PROPRIEDADE SOCIAL III

Gursen De Miranda*



Encíclica Rerum Novarum, de 1891.

Procurando o fiel da balança entre as idéias que repercutiam, a igreja católica, por meio do Papa Leão XIII (1810-1903), no dia 15 de maio de 1891, outorgou ao mundo a carta encíclica Rerum Novarum, sobre a condição dos operários. Direciona seus ensinamentos na propriedade privada como direito natural, sob dois fundamentos: (1) o caráter racional do homem; e, (2) o sentido do trabalho humano.

A igreja católica, bem antes da encíclica de Leão XIII, havia se manifestado na mesma linha, certamente, sem a mesma repercussão. O papa Clemente (Da Epístola 5ª à Igreja de Jerusalém) defendeu que “o uso das coisas deste mundo deve ser comum para os homens, porém houve alguém que iniquamente tornou isto seu, o outro, aquilo, e assim se estabeleceu a propriedade entre os mortais”. São Crisóstomo (De Homilias), da mesma forma, afirma que “Deus fez comuns as coisas indispensáveis à vida, como a luz, o ar, a terra, o sol ... Por isso a comunidade é de origem divina e natural, sendo artificial e humana a propriedade”.

O fundamento filosófico da doutrina da igreja católica, no entanto, vem da Idade Média, do século XIII, sob a concepção aristotélica de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) com a Summa Contra Gentiles, para quem “cada coisa alcança sua colocação ótima quando é ordenada para o seu próprio fim”. Eis a lição tomista: “Outra coisa que convém ao homem em relação aos bens exteriores é o seu uso. E quanto a isso o homem não deve possuí-los como próprios, mas como comuns ...”

O Papa Leão XIII demonstra que “o que em nós se avantaja, o que nos faz homens e nos distingue essencialmente do animal, é a razão ou a inteligência, em virtude desta prerrogativa deve reconhecer-se ao homem não só a faculdade geral de usar das coisas exteriores, mas ainda o direito estável e perpétuo de as possuir, tanto as que se consomem pelo uso, como as que permanecem depois de nos terem servido” (RN 11). Sustenta o Papa que “de tudo isto resulta, mais uma vez, que a propriedade particular é plenamente conforme à natureza. A terra, sem dúvida, fornece ao homem com abundância as coisas necessárias para a conservação da sua vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia fornece-las sem a cultura e sem os cuidados do homem” (RN 15). Esclarece, no entanto, Leão XIII que “posto que dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir à utilidade comum de todos, atendendo a que ninguém há entre os mortais que não se alimente do produto dos campos” (RN 14).

Era a fundamentação filosófica da justiça social e a consagração do direito à propriedade, ou seja, todos têm direito de ser proprietário, conforme estruturação teórica do iluminismo e sedimentação com a Rerum Novarum.

A idéia foi seguida por Pio XI, com a encíclica Quadragesimo Anno, de 1931, por João XXIII, com a encíclica Mater et Magistra, de 1961, e por Paulo VI, com a encíclica Octogésima Adveniens, de 1971. A mesma linha de pensamento da Doutrina Social Cristão, inaugurada por Leão XIII seguiu João Paulo II quando, em Puebla, México, sustentou que “sobre toda propriedade privada pesa uma hipoteca social”, defendendo a socialização da propriedade, e nas encíclica Laborem Exercens, sobre o trabalho humano, em 1981, e a Centesimus Annus, em 1991.

É a transformação da propriedade capitalista, individualista, em propriedade social, socializada, sem o comunismo. A propriedade deixa “de ser aquele direito absoluto e intangível do indivíduo sobre a coisa possuída, direito subjetivo, metafísico, racionalista e individualista, para se tornar uma situação jurídica objetiva, subordinando o bem à sua finalidade social” (Alves: 238).


Consagração constitucional

Constituição do México, de 1917.

Pela primeira vez a doutrina de Duguit transforma-se em princípio constitucional com o artigo 27, da Constituição Mexicana.

Constituição de Weimar, de 1919.

Na Europa coube à Constituição Alemã a consagração do princípio no seu artigo 157, com a máxima “a propriedade obriga”, ou seja, a propriedade deve satisfazer ao bem da coletividade. A teoria da função social da propriedade foi elevada a categoria de princípio jurídico constitucional.

Depois vieram as Constituições da Ioguslávia, de 1921 (art. 37), do Chile, de 1925 (art. 10), e a dos demais países de quase todo o mundo.

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO

Gursen De Miranda*


Somente com a Constituição de 1934 o ordenamento jurídico brasileiro proibio o exercício da propriedade “contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar” (art. 113, XVII). A Carta de 1937 foi tímida em relação a propriedade “cujo conteúdo e seus limites serão definidos nas leis que lhe regularem o exercício” (art. 122, XIV). Com a Constituição de 1946 houve avanços ao consagrar que o “uso da propriedade será condicionado ao bem estar social” (art. 147). Não houve, é bem verdade, a consagração da expressão função social da propriedade, o que ocorreu com a Carta de 1967, e com a Emenda nº 1, de 1969 (art. 160, III), mantendo o princípio, mas sem definir seus limites e abrangência: “a propriedade atenderá sua função social”.

É a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, que consagra definitivamente a matéria no inciso XXIII, do artigo 5º, como garantia fundamental (dever do proprietário; de aplicação imediata – art. 5º, § 1º; cláusula pétrea – art. 60, § 4º, IV; dever irevogável), no inciso III, do artigo 170, como princípio da ordem econômica e financeira, no § 2º, do artigo 182, como política urbana, e no parágrafo único, do artigo 185, e artigo 186, como política agrária.

A novidade trazida pelo Constituinte de 88 é a função legitimadora do artigo 5º, inciso XXIII, para que o proprietário destine aproveitamento adequado a sua propriedade, diferente da função autorizativa, das demais disposições constitucionais, para intervenção administrativa na propriedade. A regra jurídica constitucional não é meramente programática.

Nessa linha, o estudo, a interpretação e a aplicação da legislação infraconstitucional, recepcionada pela nova ordem jurídica constitucional, no que se refere à propriedade e, igualmente à posse, deve observar o cumprimento da função social.

Por outro lado, o Constituinte brasileiro foi objetivo ao garantir o direito de propriedade, na forma do inciso XXII, do artigo 5º, para que se evite, sob o pretexto da socialização, a extinção da propriedade privada. Inclusive, garantiu o direito à indenização no caso de desapropriação (CF: art. 5º, XXIV).

Nos limites da propriedade imobiliária rural, o ordenamento jurídico brasileiro traz o conceito de função social da propriedade, nos termos constitucionais:

“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.


Nessa linha, a doutrina afirma que o conteúdo social e econômico da propriedade contemporânea transborda os limites do direito civil tradicional.

O certo é que a Constituição Federal, dentre os direitos e garantias fundamentais, impõe que “a propriedade atenderá a sua função social” (CF: art. 5º, XXIII). Não é uma faculdade, é uma obrigação de todos os proprietários, ou seja, quem é proprietário deve cumprir a função social.

Foi o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964), porém, que primeiro trouxe o conceito de função social da propriedade no direito brasileiro, a teor do § 1º, do artigo 2º, reproduzido pela Constituição de 1988, apenas alterando a ordem, mas, com a exigência de ser simultenea.

O caput do artigo 2º traz um direito sob condições ao dispor que “é assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social”. Registro que o Estatuto da Terra, no seu artigo 12, impõe que “à propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função social e seu uso é condicionado ao bem-estar coletivo”.

A Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 (Lei de Reforma Agrária), que regulamenta e disciplina disposições relativas à reforma agrária, prevista no capítulo III, do título VII, da Constituição Federal, por óbvio, no artigo 9º, trata da matéria, reproduzindo, na sua inteireza, a redação do artigo 186, da Constituição Federal.

É oportuno destacar, conforme dispõe a alínea b, do § 2º, do artigo 2º, do Estatuto da Terra, que “é dever do Poder Público zelar para que a propriedade da terra desempenhe sua função social, estimulando planos para a sua racional utilização, promovendo a justa remuneração e o acesso do trabalhador aos benefícios do aumento da produtividade e ao bem-estar coletivo”.

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: REQUISITOS ABSOLUTOS

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: REQUISITOS ABSOLUTOS

Gursen De Miranda*


A função social da propriedade imobiliária rural adquire contornos próprios e relevantes, considerando-se que a terra é um bem de produção, utilizado naturalmente para produzir alimentos e outros bens vitais para o ser humano. Por isso, a exigência de normas peculiares para que o proprietário não deixe a terra ociosa, mas a utilize corretamente, não apenas produzindo, mas produzindo bem, com o cuidado de conservá-la, juntamente com os demais recursos naturais existentes, além de proporcionar o melhor para os que trabalham nessa terra. São exigências absolutas a serem observadas.

Considerando-se a peculiaridade da matéria, na aplicação da lei agrária deve-se observar o disposto no artigo 103, do Estatuto da Terra, que dispõe:

“Art. 103. A aplicação da presente Lei deverá objetivar, antes e acima de tudo, a perfeita ordenação do sistema agrário do País, de acordo com os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano.”

Com efeito, os requisitos para o cumprimento a função social da propriedade são os consagrados constitucionalmente (art. 186) e regulamentados pela Lei de Reforma Agrária (art. 9º). O ordenamento jurídico brasileiro exige que os requisitos sejam cumpridos de maneira simultânea, concomitante, conjuntamente. Nem um nem outro, todos juntos.

Merece registro, para reflexão, a prática solução oferecida por agraristas (Marques: 58-59), para comprovação do cumprimento da função social, “mediante certidões do INCRA, a respeito da produtividade; do IBAMA, a respeito do requisito vinculado á ecologia; e da Justiça do Trabalho, referente à comprovação qüinqüenal prevista no art. 233, da Constituição Federal. O requisito concernente ao bem-estar do proprietário e dos trabalhadores rurais, de difícil comprovação, poderia ser aferido pelos órgãos de extensão rural.” Acrescente-se os direitos previdênciários (CF: art. 7º) no conceito de bem-estar à pessoa do campo.

Produtividade (Função econômica).

Considera-se racional e adequado o aproveitamento do imóvel rural que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§ 1º a 7º do artigo 6º, da Lei de Reforma Agrária (LRA: art. 9º, § 1º).

Considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade (LRA: art. 9º, § 2º).

A pessoa que detém a terra, não somente o proprietário, deve fazê-la produzir, não apenas para sua satisfação, mas, também, da sociedade. Nesse caso, existem dois outros fatores a serem observados: (1) as características da terra, observando-se o tipo do solo, sua localização, a área do imóvel rural; e, (2) o apoio do Poder Público, oferecendo os meios necessários, no cumprimento de sua política agrária, como crédito, preço mínimo, eletrificação rural, irrigação, estradas, armazenagem.

Atente-se para o disposto no artigo 8º, da Lei de Reforma Agrária, que considera “racional e adequado o aproveitamento de imóvel rural, quando esteja oficialmente destinado à execução de atividades de pesquisa e experimentação que objetivem o avanço tecnológico da agricultura”.

Ambiental (Função ecológica).

Considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade (LRA: art. 9º, § 2º).

Considera-se preservação do ambiente das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas (LRA: art. 9º, § 3º).

O cumprimento da função ecológica, de maneira geral, conforme entendimento doutrinário (Borges, 1999: 76), não se restringe ao proprietário particular, mas, igualmente, é uma obrigação do Poder Público, pois, trata-se de mandamento constitucional. Na seara do direito agrário, a teor das disposições insertas no artigo 10, do Estatuto da Terra, c/c, § 2º, do artigo 9º, da Lei de Reforma Agrária, a exigência limita-se ao imóvel rural do particular no exercício ou não da atividade agrária.

Trabalhista (Função laboral).

A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como as disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parcerias rurais (LRA: art. 9º, § 4º).

Bem-estar (Função sociológica).

A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel (LRA: art. 9º, § 5º). Acrescente-se que os direitos previdênciários podem estar contidos no conceito de bem-estar à pessoa do campo (CF: art. 7º).

domingo, setembro 11, 2005

FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA

FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA

Gursen De Miranda*



A função social da terra deve ser entendida como o princípio fundamental do direito agrário, o princípio que envolve e orienta as atividades no âmbito agrário.

Inicialmente cabe observar que a expressão comumente utilizada, função social da propriedade, no caso do direito agrário, pode ser considerada impropriedade técnica, pois caracteriza apenas parte de um estudo central da disciplina que é a função social da terra.

A função social da terra, ao invés de função social da propriedade, deve ser vista e analisada como um dos princípios abrangidos pela concepção eminentemente social do direito agrário.

Aliás, o mestre Paulo Torminn Borges (1983, p. 26) assevera de forma bastante clara que “não é apenas a propriedade rural que tem uma função social a cumprir; mas, se falamos de Direito Agrário, é estritamente da função social da terra que trataremos”.

Função social da terra, pode-se afirmar que constitui o princípio central do direito agrário, do qual a função social da propriedade da terra é um subtema, bem como, todo e qualquer princípio ou instituto que tenha por objeto a terra. Assim, pode-se dizer da função social da posse da terra; função social da empresa agrária; função social dos contratos agrários; enfim, toda e qualquer atividade que se realize sobre a terra existe a obrigação de se cumprir a função social.

O princípio da função social da terra ressalta o sentido que a terra está a serviço do homem e, não, o homem a serviço da terra, mas, que a terra não é mercadoria e, sim, um meio de produção ou de utilidade social (Sodero, 1968: 89).

A terra, como bem de produção, deve satisfazer a sociedade. Aquele que trabalha a terra como posseiro, como proprietário, como arrendatário, como parceiro sem-terra, como empregado rural. Em suma, todo e qualquer homem (e mulher) do campo deve fazer a terra produzir, visando a sua satisfação e de sua família e o bem da sociedade. Portanto, todo o trabalho que se realize sobre a terra deve ter, também, finalidade social.

Função social da terra no sentido da necessidade de produção de alimentos para a sociedade presente e a sua conservação para as gerações futuras.

A visão social é acentuada, sobremaneira, pelo fato de a terra ser uma necessidade natural ao ser humano, numa concepção agrário-geográfica, como base do viver, do trabalhar e do produzir.

Eidorfe Moreira no estudo “Idéias para uma concepção geográfica da vida”, realizado em 1962 (Cf. Monteiro: 109), mostra que “todo ser tem necessidade de um certo apoio ou aconchego telúrico, base real de sua efetividade na vida, quer esse apoio ou aconchego seja um ninho, uma toca, uma gruta, um trato de terra ou um abrigo qualquer”.

Acrescenta o jurista-geógrafo paraense que “é por aí que se começa a incorporalidade de todos eles à paisagem, a ficção das suas relações com a vida. É aí que reside a sua irredutibilidade social no espaço e com tal suscitação primária de um certo exclusivismo em relação aos demais”.

Pode-se dizer, então, que a terra estará cumprindo com sua função social quando satisfazer a necessidade natural de viver (morar e trabalhar) do ser humano. Desta forma, a pessoa adquire o direito de viver sobre um pedaço de terra, independentemente de qualquer formalidade e/ou burocracia estatal.

Nessa linha de raciocínio o ensaísta mostra o verdadeiro significado da propriedade da terra:

“O que é uma necessidade ou condição geral dos seres assume, com respeito ao homem, o caráter especial de um direito. Com ele esse nexo mesológico transcende ao seu sentido original e passa a constituir uma complexa relação social, e essa relação, juridicamente disciplinada e garantida sob diferentes formas ou regimes, é a propriedade”.


Esta, portanto é a concepção geográfico-jurídica-filosófica da propriedade da terra no direito agrário e, não “como forma ou categoria a priori de direito” como pensam vários jusfilosófos. Muito pelo contrário, é por força dessa necessidade ecológica ou cósmica já referida que a idéia de propriedade antecede a experiência jurídica (Monteiro: 110).

Melhor diz Eidorfe (Cf. Monteiro: 109):

“Antes de ser um princípio jurídico ou razão social a propriedade é um vínculo mesológico, e como tal uma relação geográfica...”.


Por outro lado, sabe-se que no direito agrário o fundamento maior do direito à terra é o trabalho. Trabalho que dá função social a terra. Daí, pode-se afirmar que a terra pertence a quem a trabalha, a quem a faz produzir, a quem a amanha, a quem exerce a atividade agrária. É o entendimento mediante o qual, a todo o trabalhador rural assiste o direito de permanecer na terra que a cultiva.

Da mesma forma, “a simples detenção da terra pelo poderio econômico de seu proprietário ausente, não tem guarida em uma lei de reforma agrária” (Sodero, 1968: 90), pois, não estará cumprindo com a sua função social.

Não é sem razão, portanto, que o saudoso Fernando Sodero (1968: 91), ao analisar o caso brasileiro da função social da terra, tenha afirmado que “era preciso deixar claro que a terra deveria pertencer a quem a trabalha, a quem a fecunda, a quem dela retira seu sustento de forma profissional, fica certo, pois, que o trabalho é o elemento que deverá caracterizar e fundamentar o direito de propriedade - princípio este considerado pelo Direito Agrário”.

Como se verifica, a função social da terra tende a imprimir dinâmica sobre a própria terra; no sentido de fazer cumprir sua função social.

A terra não deve ficar ociosa, improdutiva, enquanto milhões de seres humanos passam fome. Por isso, a importância da função social da terra ser cumprida, a terra como bem de produção vital, deve satisfazer a todos da sociedade e, não, ficar para o gozo e benefício de alguns “privilegiados”. O interesse geral e social deve prevalecer sobre o interesse individual e particular.

Fica, assim, entendido que a função social da terra estará cumprida, quando um maior número de pessoas tiver acesso a esta terra, para nela viver e trabalhar; quando esta terra estiver produzindo alimentos suficientes para alimentar um maior número de pessoas na sociedade, conservando-se os recursos naturais e observando-se as relações de trabalho, com o bem estar de todos.

A função social da terra estará sendo cumprida quando favorecer a dignidade da pessoa humana, nos termos do inciso III, do artigo 1º, da Constituição Federal (Camargo: 69), quando favorecer a cidadania do homem (e da mulher) do campo.


sexta-feira, setembro 09, 2005

CARTA DO DIREITO AMAZÔNICO.

CARTA DO DIREITO AMAZÔNICO.

Os participantes do Congresso Internacional de Direito Amazônico, convocados pela Academia Brasileira de Letras Agrárias (ABLA), realizado em Boa Vista – Roraima, Amazônia – Brasil, no período de 29 de março a 02 de abril de 2004, aprovaram o presente documento, denominado “Carta do Direito Amazônico”, e resolveram:

1. Exigir maior dinamismo e visibilidade à Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).

2. Transformar o Congresso Internacional de Direito Amazônico em Fórum Permanente, coordenado pela Academia Brasileira de Letras Agrárias (ABLA).

3. Compilar, analisar e discutir os tratados e acordos de integração e cooperação em defesa do interesse comum, promovidos pelos distintos países que fazem parte da Amazônia.

4. Incentivar a elaboração de leis uniformes nos países amazônicos, inclusive no tocante aos textos constitucionais de cada pais;

5. Constituir Banco de Dados relativos:

a) à legislação existente em cada país que verse sobre interesses amazônicos, para análise, discussão e debate visando seu conhecimento, aperfeiçoamento e/ou formulação de novas normas de adequação;

b) às instituições públicas que tenham vínculo ou pertinência com a região amazônica;

c) às instituições privadas nacionais e estrangeiras que atuam na região amazônica ;

d) à biodiversidade ou diversidade biológica existente na região, objetivando a prevenção e a repressão de patenteamento de produtos autóctones por estrangeiros;

e) a todos os Centros de Pesquisa e Tecnologia e Universidades nacionais e estrangeiras que atuam na região amazônica.

6. Transmitir todos os dados obtidos à Secretaria Permanente da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).

7. Sugerir aos poderes públicos dos diferentes países amazônicos o cadastramento, controle e fiscalização de todas as ONG’s nacionais e estrangeiras e de missões religiosas que atuam na região amazônica.

8. Incentivar a que as comunidades amazônicas promovam a sua participação nos cursos oficiais de primeiro e segundo graus até atingir o nível superior, inclusive de pós-graduação, a fim de aproveitar a experiência tradicional no processo desenvolvimentista de cada país e toda a região amazônica.

9. Lutar para a implantação de formas alternativas de linhas e cadeias produtivas com base na ciência e tecnologia, objetivando preservar e recuperar, os recursos naturais da Amazônia, carentes de um novo modelo de exploração e utilização.

10. Propugnar pela compatibilização entre os interesse das comunidades amazônicas e o desenvolvimento economicamente sustentável.

11. Incentivar e fomentar o associativismo e o cooperativismo, como forma de desenvolvimento econômico e social da região amazônica.

12. Fomentar a implantação de sistemas pan-amazônicos de defesa sanitária, animal e vegetal.

Terra de Macunaima (Boa Vista – Roraima), em 02 de abril de 2004.


Academia Brasileira de Letras Agrárias